segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A maldição de João Cabral de Melo Neto?

Time do América campeão pernambucano em 1944,
o último que fez o poeta João Cabral de Melo Neto gritar "campeão".

Emanuel Leite Jr.

O torcedor do América F. C.                                   
O desábito de vencer
não cria o calo da vitória;
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a sem mofo: coisa fresca,
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto do sol no Cais da Aurora.

Tradicional clube recifense, o América é o quarto maior campeão do futebol pernambucano, com seus seis títulos estaduais. O último, porém, conquistado em fevereiro de 1945, válido pela edição de 1944 - “coisas deste futebol brasileiro, que nunca foi muito sério”, como bem disse João Cabral de Melo Neto, em carta a Manuel Bandeira. De lá para cá, o Mequinha perdeu sua força e jamais voltou a deixar o “Recife coberto de verde”. Ontem, 10 de novembro de 2013, o América voltou a disputar uma final de estadual depois de 63 anos. É verdade que se tratava da decisão da Série A2. Entretanto, valia um título, feito que o Periquito não alcançava há 69 anos. O Esmeraldino, contudo perdeu. Nos pênaltis, para o Acadêmica Vitória. Mais um ano de jejum em sua história. E, mais uma vez, o time pelo qual pulsava o coração de João Cabral de Melo Neto foi vítima da armadilha que próprio poeta tentou fazer com o “Criador”.

Poeta e diplomata, João Cabral de Melo Neto foi um dos maiores poetas da língua portuguesa no Século XX. Culto, o escritor era fluente em inglês, francês, espanhol e catalão, além de ser um “patriota da língua pernambucana”, como ele mesmo gostava de dizer. Mas além da paixão pelas manifestações estéticas da percepção e emoção através da literatura, pintura, ou do teatro, aquilo que chamam de arte, o imortal - membro das Academias de Letras do Brasil e de Pernambuco - João Cabral nutria uma paixão por outra forma de arte: o futebol brasileiro - “você assiste porque é um espetáculo bonito”, afirmou em entrevista quando morava na França, justificando seu desinteresse pelo futebol “em que não se vê uma jogada maliciosa, um gesto harmônico e nem elegância” dos europeus.

Como todo apaixonado pelo futebol, João Cabral de Melo Neto tinha um clube de coração. Este clube era o América, pelo qual chegou a jogar o Pernambucano de Juvenil de 1935. E foi movido pela emoção que seu América lhe causava, que o poeta confidenciou em carta ao primo Manuel Bandeira uma armadilha que tentara pregar a Deus. Recorrendo ao sobrenatural, “um surto de superstição. Uma perda momentânea da razão”, João Cabral, crente de que o América não seria capaz de bater o Náutico na final do Pernambucano de 1944, desafiou.

“Quando o ano começou e foram anunciadas as partidas decisivas, absolutamente certo de que o Náutico seria campeão, chamei o Criador para uma armadilha. Disse-lhe que, caso o meu América vencesse, eu me daria por satisfeito. Poderia ser o último título conquistado. Poderia não ser campeão mais nunca. Eu ficaria feliz com aquele título.”

João Cabral, vivendo no Rio de Janeiro, seguiu atentamente todas as notícias que chegavam do Recife acerca de cada jogo da grande final, decidida em quatro partidas. Para o poeta, aquela brincadeira particular com Deus não passaria de um experiência literária - “como Deus não existe, ou não haveria essa vida Severina (gostei da expressão, talvez eu torne a usá-la no futuro), seria um mera experiência literária.”

No dia da última partida, 18 de fevereiro de 1944, João Cabral se trancou em seu quarto, leu muito e dormiu pouco. Ansioso para que os minutos passassem, as horas se fossem e chegasse, finalmente, o momento de saber se o América fora ou não campeão pernambucano. “Não cogitava que poderes sobrenaturais controlassem uma pelota, vinte e dois homens e um mero jogo. Mal disfarçando, porém, um certo nervosismo, escutei quando alguem gritou lá de dentro que mandassem me avisar: O América era campeão pernambucano!”

O América vencera o Náutico por incontestáveis 3 a 0 na Ilha do Retiro, estádio do Sport. “Enlouqueci, Manuel. Confesso que perdi meu prumo durante alguns instantes, e caso estivesse em Recife, teria sido uma festa. Imaginei Recife coberto de verde”, celebrou o poeta.

Preocupado com sua pequena aposta com Deus, João Cabral tentou relativizar a possível interferência divina na decisão do Pernambucano. “Agora reestabelecido e feliz, eu sei que tudo não passou de um surto de superstição. Uma insanidade temporária. Uma perda monentânea da razão. O América era de fato um esquadrão invencível. Ano que vem será, aliás daqui a alguns meses, será bicampeão. Hoje somos os campeões de 1944, mesmo estando em 1945. Coisas deste futebol brasileiro, que nunca foi muito sério”, escreveu, antes de finalizar. “Deus, se é que existe, deve estar cuidando de outras coisas bem mais importantes.”

Em 1945, o América foi vice-campeão pernambucano, somando um ponto a menos que o campeão Náutico, na fase final: 16x15. Em 1947, o Esmeraldino foi derrotado pelo Santa Cruz na final. Em 1948, nova decisão de estadual e outra derrota, desta vez para o Sport. Dois anos depois, mais uma final contra o Náutico. Mais uma derrota. 1952… Mais um vice-campeonato, com seu grande rival Náutico sendo novamente campeão.

João Cabral de Melo Neto faleceu em 1999. Foi enterrado encoberto com a bandeira do América. Arnaldo Niskier afirmou, em discurso no "Salão dos Poetas Românticos", na Academia Brasileira de Letras, onde foi velado o corpo do poeta pernambucano. "Fecham-se os olhos cansados do poeta João e não conseguimos realizar o sonho que agora desvendo: ver o América Futebol Clube voltar aos seus dias de glória. Nem o daqui do Rio, nem aquele que era a sua verdadeira paixão: o América do Recife."

Ontem o América voltou a disputar uma final. A primeira desde a decisão do Pernambucano de 1950. E, como se fosse uma maldição, assim como todas as finais disputadas desde 18 de fevereiro de 1945, o América saiu de campo derrotado.

"Há os que gostam de ver futebol porque gostam de ver o time predileto ganhar. Mas acontece que meu clube é o América. Ganha tão pouco... Então, gosto de futebol não para ganhar. Gosto pelo espetáculo”, João Cabral de Melo Neto.

A íntegra da carta de João Cabral de Melo Neto a Manuel Bandeira.

Prezado Manuel,

Ontem, fui dormir feliz. De longe chegou a notícia que o meu querido América vencera o Náutico por 3x0. Em quatro jogos decisivos, três vitórias maiúsculas. O que mais posso eu desejar dessa vida? Apenas me dói o fato de nao estar no Recife. Soube que uma multidão conduziu nossos jogadores até o Bar Savoy. Soube que a Ilha do Retiro foi pequena para acomodar tantos quantos quiseram assistir nosso momento de glória.

Sabe que como me arrependo de ter jogado pelo Santa Cruz. Eu queria, na verdade, usar o manto verde e branco. Mas eram coisas da idade.

Manuel, mas apresso-me em te contar. Eu, que como sabes, sou o mais descrente dos crentes, cansado de tantas derrotas durante tantos anos, decidi provocar o Criador.

Quando o ano começou e foram anunciadas as partidas decisivas, absolutamente certo de que o Náutico seria campeão, chamei o Criador para uma armadilha. Disse-lhe que, caso o meu América vencesse, eu me daria por satisfeito. Poderia ser o último título conquistado. Poderia não ser campeão mais nunca. Eu ficaria feliz com aquele título.

Como Deus não existe, ou não haveria essa vida Severina (gostei da expressão, talvez eu torne a usá-la no futuro), seria um mera experiência literária.

No primeiro jogo dessa absurda e interminável disputa final, o inesperado acontece: O América triunfa!
Calei em meu canto, desconfiado. Mas não havia de ser nada. Quase que torcendo contra meu time do coração, aguardei o resultado da segunda peleja. Menos mal, o universo parecia estar voltando para o seu lugar devido. E, durante um certo tempo, acalentei novamente a certeza no meu mundo material. Pois, tu sabes, a inspiração eu deixo contigo. Não me deixo levar por esta quimera.

Manuel. Chegou então o momento do terceiro jogo. Acordei convicto de que ali terminavam minhas dúvidas metafísicas. E o América venceu novamente!

Tranquei-me em mim mesmo. O mundo inteiro em guerra e eu convalescendo de uma absurda dúvida existencial.

Conto a ti estas coisas, pois sei que somos diferentes. Tens inspiração, lirismo, lembranças que eu não consigo ter. Quem sabe, tens até fé em Deus? Não essa fé social, mas uma fé real, idealista. Eu lia versos de Cordel para empregados lá do engenho, eu tinha pena deles, mas uma pena racional. Uma pena da vida e da morte daqueles pobres diabos. Que já vivem no inferno.

Mas agora, tratava-se de um fato totalmente diverso. Os céus subitamente ganhavam vida. E o América, subitamente, parecia uma máquina de platina de jogar futebol. Ia triturando os alvirrubros. Sem dó nem piedade.

No dia de ontem, fui para meu quarto e lá me tranquei. Li muito. Dormi um pouco. E quando as horas do jogo se escoaram, busquei saber notícias do Recife. Estavam novamente racional. Não cogitava que poderes sobrenaturais controlassem uma pelota, vinte e dois homens e um mero jogo. Mal disfarçando, porem, um certo nervosismo, escutei quando alguem gritou lá de dentro que mandassem me avisar: O América era campeão pernambucano!

Enlouqueci, Manuel. Confesso que perdi meu prumo durante alguns instantes, e caso estivesse em Recife, teria sido uma festa. Imaginei Recife coberto de verde. Vou querer pintar o Bar Amarelinho com outras cores amanhã. E diabos, ninguém conhece meu América aqui no Rio!

Agora reestabelecido e feliz, eu sei que tudo não passou de um surto de superstição. Uma insanidade temporária. Uma perda monentânea da razão. O América era de fato um esquadrão invencível. Ano que vem será, aliás daqui a alguns meses, será bicampeão. Hoje somos os campeões de 1944, mesmo estando em 1945. Coisas deste futebol brasileiro, que nunca foi muito sério.

Deus, se é que existe, deve estar cuidando de outras coisas bem mais importantes.

Um abraço, meu caro Manuel Bandeira,

Do seu primo,

João Cabral de Melo Neto.

PS: Perdão se na emoção que agora sinto, a cronologia dos fatos houver me traído a memória. Em tempo, nosso primo Gilberto deve estar descabelando com as derrotas do seu Esporte! (atual Sport Recife).