quinta-feira, 2 de maio de 2013

A FIFA e a ilusão da democracia


As declarações e os conceitos de democracia das autoridades da FIFA, Jérôme Valcke e Joseph Blatter, corroboram com o fundamento da democracia estatal-capitalista, cujos alicerces se encontram na Revolução Francesa. As garantias dos direitos para que tenha a certeza d o máximo lucro possível está acima de qualquer preceito democrático. O importante é um Estado de Direito e não um Estado Democrático de Direito.



Na quarta-feira da semana passada, dia 24 de abril, duas declarações de homens de alto escalão da Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA) causaram indignação em muita gente. O secretário-geral da entidade máxima do futebol mundial, Jérôme Valcke, declarou, em um simpósio, que é mais fácil organizar uma Copa do Mundo em países com menos democracia. Ao passo que Joseph Blatter, presidente da FIFFA, afirmou que se sentiu feliz com o título argentino na Copa do Mundo de 1978, realizada no país portenho, por ter “reconciliado o povo com o sistema político militar”, leia-se, com a ditadura sanguinária do General Jorge Videla.

Para Valcke, “menos democracia às vezes é melhor para se organizar uma Copa do Mundo. Quando você tem um chefe de estado forte, que pode decidir, assim como Putin poderá ser em 2018, é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha, onde você precisa negociar em diferentes níveis”, foram suas exatas palavras. No ponto de vista da FIFA e de seus interesses econômicos, um estado cujas instituições democráticas sejam mais frágeis e estejam à mercê dos ditames de uma autoridade centralizadora seria o modelo ideal de parceiro para a organização do maior evento esportivo do mundo, a Copa do Mundo de futebol.

Como regime político, de acordo com Abraham Lincoln, “a democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo”, este é o sentido de democracia adotado pela teoria política da civilização ocidental, em que os governados (povo) têm participação no governo. Montesquieu, em sua clássica obra Do Espírito das Leis, pontifica: “Quando, numa república, o povo como um todo possui o poder soberano, trata-se de uma Democracia. [...] O povo, na democracia, é, sob alguns aspectos, o monarca; sob outros, o súdito.”

Este é o conceito ocidental de democracia. Ou a ilusão (de um ideal) da democracia. Na prática, entretanto, como a história é profícua em nos ensinar, as grandes instituições – sejam elas estatais, empresariais ou até mesmo religiosas – preferem atuar em desconformidade com o controle do poder da soberania popular. Para os pequenos e seletos grupos de poder, ter que se submeter ao “povo, pelo povo, pra o povo” não é interessante, uma vez que podem interferir diretamente seus anseios político-econômicos.

Em regra, o público (leia-se o povo, de onde deveria emanar o poder em uma democracia) fica excluído das grandes discussões, sem sequer conhecer de que modo se operam as transações mais preponderantes para a sociedade. Em O lucro ou as pessoas? – neoliberalismo e ordem global, o eminente professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Noam Chomsky, traz uma reveloradora declaração do já falecido cientista político Samuel Huntington, que escrevera em American Politics: “Os arquitetos do poder nos Estados Unidos devem criar uma força que possa ser sentida, mas não vista. O poder se mantém forte quando permanece à sombra.”

Chomsky descreve essa afirmação como a “criação de uma falsa impressão, para iludir o público e excluí-lo por completo.” E é este o modelo da democracia estatal-capitalista, cujos alicerces se encontram nas revoluções burguesas do Séc. XVIII. Foi levado por esta lógica que Valcke deixou escapar “algo que é maluco”, como ele mesmo definiu e que, posteriormente, tratou de esclarecer que não passara de um mal entendido.

Para compreender melhor esta ilusão da democracia, é preciso voltar no tempo. Mais precisamente ao ano de 1789. Em 14 de julho daquele ano, “uma revolução social de massa” (Hobsbawm) tomou de assalto um dos maiores símbolos do absolutismo francês, a Bastilha. Trata-se, claro, da Revolução Francesa. Um de seus legados se tornou um marco para todos os países, foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Eric Hobsbawm a definiu como “um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres”, ou seja, a garantia da liberdade do indivíduo perante o Estado, a limitação e o controle do poder do Estado.

Entretanto, embora reconhecendo o fundamental valor da Revolução Francesa e, principalmente, o marco significativo da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, é imprescindível se analisar esta passagem da história da humanidade com um olhar crítico. É indiscutível que, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fundou-se uma nova perspectiva, base do Estado moderno, apoiada em uma relação diferente entre o Estado e o cidadão, na qual passou a haver um limite aos abusos de poder do Estado, através de novas formas de controle do poder estatal.

Contudo, chegamos a algumas indagações:

A quem serviu esta nova perspectiva? A quais interesses respondia essa nova base de Estado, essa diferente relação entre o Estado e o cidadão? Quem se beneficiou desta “radical inversão de perspectiva” (Bobbio)?

Foi o povo, a massa social que tomou a Bastilha, o grande beneficiado desta mudança histórica? O povo tomou a bastilha. A burguesia chegou ao poder. O próprio Hobsbawm afirma que a Declaração “não era um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária”. Pregar a liberdade, não significava, obrigatoriamente, a defesa da democracia e de uma sociedade verdadeiramente igualitária.

Os burgueses, ou melhor, os liberais clássicos, não estavam preocupados com a democracia ou com uma sociedade igualitária. O que os motivava era a fundação de um Estado que permitisse a sua ascensão e afirmação social.

É sob esta perspectiva que Valcke prefere a Rússia de Putin a um país organizado, disciplinado e ético como a Alemanha. O que importa para a FIFA não é a democracia no país-sede de sua Copa do Mundo, mas sim as garantias dos direitos (por isso Estado de Direito) para que tenha a certeza de que terá o máximo de lucro possível.

É também por esta razão que o presidente da entidade, o suíço Blatter, ficou feliz com a vitória da Argentina do ditador Videla, que tinha, na Copa do Mundo de 1978, sempre ao seu lado o ex-Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, um dos principais articuladores das ditaduras militares na América Latina (conforme revelou o WikiLeaks no denominado Kissinger Cables).

Indignado, o povo não se apercebe (e sequer tem capacidade de poder perceber) que se encontra imerso na ilusão da democracia. Em breve, escreverei sobre a Copa do Mundo de 2014 e a ilusão do “em se construindo tudo nasce”.

2 comentários:

  1. Parabéns, ótima análise.

    Com a ressalva: "Indignado, o povo não se apercebe (e sequer tem capacidade de poder perceber) que se encontra imerso na ilusão da democracia."

    As coisas mudaram em poucos dias, não?

    Abs

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  2. Obrigado pelo comentário, Fernando.

    Sim, sem dúvida. Felizmente, o povo brasileiro parece acordar para a realidade e começa a exigir os seus direitos.

    Abraços.

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